Transformando saúde e vida

 

O significado da enurese como sintoma no corpo da criança

 

 

As manifestações psicossomáticas são comuns na infância, uma vez que o corpo é o mensageiro de toda angústia e mal-estar vivido. A enurese noturna e a encoprese são distúrbios somáticos que surgem com frequência em crianças de 6 a 12 anos e, embora considerados apenas um sintoma e não um transtorno psicológico, causam incômodos ao sistema familiar.

 

Os sintomas mascaram o conflito real, criam um falso problema, encobrindo o núcleo dramático conflitivo verdadeiro das relações familiares (Antony, 2009). Por trás da enurese e da encoprese há problemas na dinâmica familiar a ser resolvidos.

Por trás da enurese e da encoprese há problemas na dinâmica familiar a ser resolvidos.

 

Segundo Ajuriaguerra e Marcelli (1986, p. 126) os distúrbios esfincterianos são marcados pela passagem de “um comportamento reflexo automático a um comportamento voluntário controlado”. Ocorrem no período em que a criança tem a primeira tomada de consciência do eu por meio do corpo, que a faz pensar: “Eu agora sou capaz de controlar meu corpo, eu comando o meu corpo”. Nesse ínterim, torna-se deflagrado o início do conflito autorregulação versus regulação externa, entre eu e o outro.

 

Um sintoma somático pode ser visto como reação a estados emocionais perturbadores. O corpo fala por um sujeito silenciado em seu sofrimento emocional mediante a voz do sintoma corporal. O indivíduo assim regride a um estado anterior vivido, em que depende de outro significativo responsável por sua sobrevivência física.

 

Segundo McDougall (1991), “a vida psíquica começa com uma experiência de fusão que leva à fantasia de que existe apenas um corpo e um psiquismo para duas pessoas e que estas constituem uma unidade indivisível”. Para o bebê, sua mãe e ele próprio são uma única pessoa. A mãe, a atender às demandas do bebê com um contato corporal protetor e caloroso (o que inclui tom de voz, modo de acolhê-lo nos braços, trocar roupa e fralda), traz alívio, recria a ilusão do Um e proporciona a possibilidade de integrar uma imagem interior de conforto e tranquilidade do ambiente maternal. A partir dessa experiência somatopsíquica com o corpo materno, o bebê cria uma representação psíquica do próprio corpo e do mundo externo, estabelecendo uma diferenciação progressiva paralela entre o que é somático e o que é psíquico. Esse processo inicial de diferenciação, segundo McDogall (1991), é o caminho do crescimento psicoemocional e da individuação, o que requer dupla separação – seu corpo e seu eu apartados do corpo materno e do eu subjetivo da mãe.

 

A autora ressalta que há mães que resistem ao movimento de separação ou de renúncia à sua presença física no percurso existencial dos filhos, o que abre caminho para o aparecimento de diversos problemas psicossomáticos. Para Marcelli (apud Almeida, 2016), o surgimento de uma doença psicossomática contribui para a instauração de uma relação de cuidado entre mãe e criança, sendo o (re)estabelecimento dessa relação fundamental para o retorno do equilíbrio emocional da criança e do sistema familiar. Essa é a linguagem do psiquismo que se revela no corpo, e a linguagem do corpo expõe nosso psiquismo carregado de emoções, sentimentos, desejos, pensamentos, fantasias.

 

De acordo com Leloup (1998), “o corpo inconsciente guarda o segredo de nossa história pessoal e também da história coletiva. E, algumas vezes, nosso corpo somatiza problemas que não são nossos, que não são apenas aqueles da nossa primeira infância”. A criança com sintomas psicossomáticos vem denunciar problemas nas interações pais-filhos, falhas nos cuidados primários corpóreos-afetivos, angústias e ansiedades trazidas pelos pais nas relações passadas do sistema transgeracional da família.

 

 

Antony & Zanella. Infância na Gestalt-terapia – caminhos terapêuticos. São Paulo, Summus, 2020.